Os Desertores
No dia 5 de novembro, enquanto a COP26 decorria em Glasgow, também em Lisboa se debatia o clima. Nesse dia, a Assembleia da República aprovou, por larga maioria, a Lei de Bases do Clima, que define metas de redução da emissão de gases com efeito de estufa mais ambiciosas, a serem revistas a cada 5 anos. Abre a porta a que se venha a antecipar o objetivo da neutralidade carbónica de 2050 para 2045 e torna-nos no primeiro país do mundo a reconhecer oficialmente o clima estável como Património Comum da Humanidade.
A proposta foi aprovada com os votos favoráveis das bancadas do PS, PSD, Bloco de Esquerda, CDS-PP, PAN, PEV, Chega e das deputadas não inscritas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues. A votação é expressiva e o facto de ter reunido consensos entre os partidos sentados mais à esquerda e mais à direita do hemiciclo sublinha a importância do tema: estamos perante uma emergência climática e este não é o tempo para guerrilhas ideológicas, por se tratar de garantir a continuidade da nossa espécie.
Dos votos favoráveis à proposta, notam-se duas ausências: as do PCP e da Iniciativa Liberal. O PCP absteve-se na votação, o que se explica por terem apresentado uma proposta alternativa para este documento, que foi rejeitada, em prol do texto comum que acabou por ser aprovado. Por sua vez, o deputado da Iniciativa Liberal destacou-se como o único que votou contra a Lei de Bases do Clima.
Como é que a Iniciativa Liberal justifica este sentido de voto? Pura e simplesmente, não justifica. No dia da votação, quando podia ter optado por fazer uma declaração de voto oral sobre o tema, não o fez. Em vez disso, comprometeu-se a entregar uma declaração de voto por escrito, a ser incluída no Diário da Assembleia da República, que ainda não foi publicado. Ao contrário do PCP, não levou a votação qualquer alternativa ao texto aprovado. Além disso, em nenhum dos dias que passaram desde então, mencionou sequer o tema – pelo menos, não em qualquer canal oficial.
A IL nunca se tinha colocado à parte da luta pelo planeta. Neste tema, o partido alinhou-se, até agora, com a imagem que tenta transparecer de partido cosmopolita e moderno, moldado ao século XXI. O tema foi referido na sua declaração de princípios, novamente no programa eleitoral para as legislativas de 2019 e continua listado como um dos fundamentos do partido na sua página – “A Iniciativa Liberal acredita num desenvolvimento sustentável (...) e um ambiente responsavelmente preservado”. Ainda recentemente, em eleições autárquicas, o partido propôs-se a “responder aos desafios climáticos” na Câmara Municipal de Lisboa, apresentando propostas concretas.
Não é chocante um partido que apoia tão brusca liberalização do tecido económico, como a Iniciativa Liberal, se oponha a impor mais regras às empresas no sentido da descarbonização, confiante que a “mão invisível” que guia o mercado acabará por atingir esse objetivo. É uma atitude profundamente irresponsável, que só faria sentido em algum conto de fadas em que pudéssemos entregar o destino da nossa espécie à boa vontade dos grandes empresários. Mas é a atitude com que a Iniciativa Liberal constrói as suas políticas.
É, aliás, natural e compreensível que a Iniciativa Liberal discorde dos partidos que mais contribuíram para a elaboração da lei, em relação à forma como a descarbonização do país será feita. Como um simples exemplo, compreende-se que um partido liberal prefira focar-se num alívio da carga fiscal a empresas que contribuam positivamente do que num aumento da taxação de empresas mais poluentes (ainda que as duas medidas não sejam mutuamente exclusivas). Mas o texto aprovado foca-se muito mais profundamente em definir conceitos e estabelecer metas, quase não entrando em detalhe acerca das formas de proceder para as atingir. Das poucas vezes que refere algo mais específico, não parece apelar a ações que, teoricamente, devam chocar a sensibilidade liberal, como no caso do fim dos subsídios a combustíveis fósseis.
Mesmo que a Iniciativa Liberal discorde tão profundamente destes detalhes que escolhe nem sequer abster-se, mas votar contra, falhou no essencial: se tinha uma visão fundamentalmente diferente de como devemos combater as alterações climáticas, teve tempo e espaço para propor uma alternativa que estivesse de acordo com os programas que foi apresentando aos seus eleitores. Talvez até uma alternativa que agregasse os restantes deputados da direita parlamentar e, por isso, não pudesse passar despercebida. Uma proposta em linha com o que a sua família política europeia propõe, dado que a transição para uma economia verde é uma das bandeiras do ALDE.
A Iniciativa Liberal optou por fazer uma oposição destrutiva, em vez de construtiva. Felizmente, foi também uma oposição meramente simbólica, dado que João Cotrim de Figueiredo ficou totalmente isolado no hemiciclo. Optou ainda por manter os seus eleitores na obscuridade, nunca mencionando o tema e tentando que simplesmente passasse despercebido. Ainda a caminho da batalha pela nossa sobrevivência, a IL virou costas ao pelotão e desertou. Aos outros, responsáveis, resta-nos continuar a marchar.