Por um salário europeu digno
Ficou para a história uma alegada conversa entre Otelo Saraiva de Carvalho e o ex-Primeiro-Ministro da Suécia, Olof Palme, ocorrida pouco depois da revolução do 25 de Abril, na qual o primeiro diz ao segundo que pretende “acabar com os ricos” em Portugal. Olof Palme, de forma jocosa responde: “Curioso, na Suécia andamos a tentar acabar com os pobres”.
Volvidos quase 50 anos desde estas confidências, nem ricos nem pobres acabaram, tanto em Portugal, como na Suécia. Pelo contrário, houve um acentuar do fosso entre ricos e pobres (nomeadamente quanto aos salários auferidos) e da correlação entre trabalhadores e pobreza desde então, como demonstra a seguinte figura:
Percentagem do rendimento total capturado pelo 1%, nos diversos países.
Fonte: Thomas Piketty, O Capital no Século XXI.
Após a década de 80, com o fim dos chamados “30 anos gloriosos” e o surgimento da corrente liberal e do laissez-faire, a diferença na acumulação de capital e o aumento das desigualdades cresceu. A figura acima evidencia a acumulação de rendimento por parte do 1% mais rico da sociedade, nos diferentes países estudados.
As diferenças entre salários sempre existiram e é saudável que assim seja: são um dos pilares do mercado de trabalho livre e potenciam a concorrência e produtividade. O que não é aceitável é que uma pessoa que trabalhe continue a viver em condições miseráveis: em Portugal, quase 60% dos pobres com mais de 18 anos trabalha. Isto mostra que um só trabalho não é suficiente para retirar pessoas da pobreza. Às vezes são necessários dois ou três empregos, ou ainda recorrer a apoios sociais para complementar um salário extremamente baixo e indigno. Este facto deve-se a um mercado laboral assente em salários baixos, que não permite a estabilidade e os projectos a médio-longo prazo, como ter filhos. Além disso, uma política de contratos precários e de produção de baixo valor acrescentado perpetua uma já negativa condição laboral. Com isto, ninguém ganha: nem empregados nem empregadores.
Em particular, o salário mínimo nacional teve uma trajectória ascendente, nos últimos anos. Foi aumentado significativamente e acima da inflação, o que se traduz num aumento do salário real e do poder de compra. No próximo mês, o salário mínimo em Portugal aumentará para 705€, o que irá permitir um maior desafogo na vida das famílias.
Ainda assim, os grandes empregadores reagem a este aumento com pedidos de medidas para a sua compensação como a diminuição na TSU. Ao contrário do que é tantas vezes veículado por estes sectores ultra-liberais, este aumento continuado do salário mínimo continuado não resulta, nem resultará num aumento da taxa de desemprego. As estatísticas mostram que o desemprego está numa situação claramente descendente, mesmo com o aumento de 40% do salário mínimo desde 2015. Fica, mais uma vez, por provar a correlação entre aumento de salário mínimo e aumento da taxa de desemprego. Com isto, não quero dizer que a concertação social não é um importante encontro para o diálogo entre as diversas partes. Enquanto consigo perceber o enquadramento lógico e económico para oferecer medidas de compensação para micro, pequenas e médias empresas pelo aumento do salário mínimo, não concebo a aplicação das mesmas nos grandes grupos económicos.
A argumentação dos que se opõe ao aumento do salário esquece, também, propositadamente, o efeito do aumento do poder de compra, e ainda da propensão marginal a consumir, que é superior para rendimentos inferiores (ou seja, as pessoas com salário superior vão gastar mais do seu salário em consumo, o que gera um momento positivo na economia e potencia crescimento). Optam por referir, entre muitas teorias, o aumento do custo marginal de um trabalhador, ou seja, ser necessário pagar mais para contratar mais alguém. Seguindo esta lógica, o melhor seria abolir o salário mínimo e cada um receber uma representação da sua produtividade, após acordo com a entidade patronal. Nada poderia ser mais errado e perigoso. O mercado laboral não é perfeito, como pode ser descrito nos manuais de economia, e as empresas muito rapidamente poderiam entrar numa posição de cartelização na contratação (acordo entre empresas para evitar a concorrência mútua, neste caso fixando os salários por baixo). Não é muito difícil conceber que o mais provável seria uma diminuição generalizada dos salários ou uma interrupção do seu aumento progressivo.
Ainda assim, os que se opõem ao aumento (ou existência) do salário mínimo veiculam o facto de não existir salário mínimo em países com baixa desigualdade, como é o caso da Suécia. Apesar deste país não ter um salário mínimo generalizado e centralizado, como a maioria dos países europeus concebe, existem salários mínimos por sector, após negociação colectiva com sindicatos e representantes. Ou seja, por muito que tentem, não é o liberalismo que impera na Suécia e que promove a sua igualdade. São formas de regulação colectiva, concretizadas pelos próprios sindicatos e organizações. Tal só pode ocorrer num país com uma maturidade democrática e mentalidade progressista, tanto do lado de empresários como de empregados. Não estou totalmente seguro de que o mesmo pudesse acontecer em Portugal, pelo menos no momento em que escrevo.
Há poucas semanas os ministros do trabalho da UE voltaram a discutir uma proposta de estabelecimento de critérios e orientações para a fixação de um salário mínimo europeu adequado a cada país. Este salário mínimo poderia estar fixado como uma percentagem do salário médio, ou do salário mediano, e seria, sem dúvida, um passo importante na uniformização das políticas laborais europeias, prevenindo a competição não-saudável entre estados membros. Além disso, permitiria reduzir a pobreza nos membros produtivos da sociedade, potenciando o nosso crescimento comum, seja em termos materiais, seja morais. É também mais um passo no caminho do fim do laissez-faire europeu.
Friederich Hayek, no seu magnum opus “O caminho para a Servidão”, ao debater a dualidade concorrência/planeamento, afirma “A princípio, nada parece mais plausível, ou com maiores hipóteses de agradar a pessoas sensatas do que a ideia de o nosso objectivo não deve ser nem a descentralização extrema da livre concorrência, nem a completa centralização de um único plano, antes uma mistura judiciosa de ambos os métodos.”. Alguns adeptos do laissez-faire querem ser mais papistas que o papa.
O autor não segue o novo acordo ortográfico