Primeiro o Partido, depois o País
“Primeiro o País, depois o Partido e por fim a circunstância pessoal de cada um”. A frase de Sá Carneiro é, provavelmente, a citação mais usada por colunistas nos últimos dias. Muitos usaram-na para criticar a possibilidade, entretanto convertida em quase certeza, de as eleições legislativas após a dissolução do parlamento serem atrasadas de forma a realizarem-se depois das eleições diretas do PSD.
Permitam-me que, no contexto, defenda a inversão de parte desta ordem: “Primeiro o Partido, depois o País”. Compreendo que possa chocar, mas faço-o referindo-me a uma mera ordenação temporal, não a uma atribuição de prioridades, ao contrário do que fazia o histórico social-democrata. Trata-se de um pequeno detalhe que escapa aos referidos colunistas que o citam: a opção por uma dada calendarização de eleições nada tem que ver com uma priorização de um elemento sobre outro. Usar a frase, levada à letra, num contexto que não aquele a que ela se referia quando originalmente enunciada é falacioso.
Em política, todos querem acreditar (ou fazer acreditar) que seguem estas prioridades elencadas por Sá Carneiro. Não sou exceção. Acredito que permitir a realização das eleições diretas do PSD (e do CDS-PP) antes da data para apresentação de listas às eleições legislativas vem na defesa dos melhores interesses da nação. Passo a explicar.
As repercussões de atrasar as legislativas – e, consequentemente, a formação do próximo governo e a aprovação de um Orçamento do Estado para 2022 – serão mitigadas pelo facto de o atual governo se manter em funções e de poder governar em duodécimos, mantendo as condições dispostas no atual Orçamento. Apesar de se poder limitar algum progresso, não existe risco de o normal funcionamento do país ruir e de cairmos em anarquia por vivermos uns meses sem um novo governo ou sem um novo Orçamento. Ademais, o progresso não será assim tão limitado: muitos dos fundos para investimento previstos para 2022 provêm da execução do Plano de Recuperação e Resiliência, que não está sujeita à aprovação de qualquer Orçamento do Estado.
Não devemos, então, olhar para a governação por duodécimos como uma catástrofe, mas como uma medida de contingência detalhada na lei, para uma situação política que foi prevista e acautelada aquando da construção do nosso sistema político. Neste contexto, a marcação de eleições legislativas deve ser encarada como algo a ser feito com urgência, mas não como uma emergência. Esta perspetiva dá-nos oportunidade de procedermos de forma mais ponderada, tendo em especial consideração a salvaguarda dos nossos valores democráticos.
Reflitamos, portanto, sobre a nossa democracia. Nela, os partidos são elementos estruturais, uma figura consagrada na Constituição. Talvez com especial sensibilidade ao tópico, por ter sido originalmente escrito após décadas de atentados à liberdade de associação, o documento pelo qual regemos o nosso sistema político e social compreende que, na prática, uma democracia não se faz sem partidos.
Se queremos proteger essa democracia, temos de começar por a preservar dentro das suas partes, nomeadamente nos partidos. Afinal, que legitimidade para governar terá um eventual primeiro-ministro, se não tiver tido sequer legitimidade interna, dentro do seu partido, para se propor a esse cargo? O adiamento de uma corrida programada à liderança do PSD deixaria Rui Rio evidentemente fragilizado enquanto candidato nas legislativas e colocaria em questão todo o sistema político caso o partido saísse vencedor da disputa.
Creio que, por muito que citem a máxima de Sá Carneiro, os opositores desta solução estão, na verdade, a priorizar a sua “circunstância pessoal”. A começar pelos atuais presidentes de PSD e CDS-PP, era já previsível que tentassem adiar as suas batalhas internas por temerem serem afastados da disputa das legislativas. Se Rui Rio já deu alguns sinais de recuar, Francisco Rodrigues dos Santos fica especialmente mal neste aspeto, não olhando a meios para tentar evitar que se desenrolasse o normal funcionamento do processo democrático.
Já em relação aos adversários destes partidos que defenderam uma data mais prematura, espero que a sua intenção tenha sido também evidente: a troca de lideranças no centro-direita trata-se de uma mudança do panorama político, numa altura em que esse panorama os favorece. As lideranças partidárias mais recentes tendem a sair favorecidas por não estarem ainda desgastadas pelo tempo. Além disso, as eleições internas podem começar a mobilizar os apoiantes destes partidos, dando-lhes um ímpeto renovado imediatamente antes das eleições legislativas. Caso estes fatores levem o PS a perder votos ao centro, a esquerda pode não conseguir formar governo. Por outro lado, os novos partidos da direita temem que o voto útil em partidos mais estabelecidos abrande o seu anunciado crescimento.
Felizmente, o Presidente da República – pelo menos, em certa medida – parece concordar com este ponto de vista. Entre argumentos relacionados à realização de debates e campanhas na época festiva, acabou por apresentar uma data para as legislativas compatível com a realização prévia de eleições internas nestes partidos e que, ainda assim, não é demasiado tardia: 30 de janeiro de 2022. Com esta abordagem sensata, ganha a democracia e, por conseguinte, ganhamos todos nós.
Na prática, a realização das eleições internas no PSD e no CDS-PP não são úteis às restantes forças políticas. Daí que estas tenham fabricado uma controvérsia em torno do tópico. No entanto, beneficiam o povo, que só tem a ganhar com a preservação da democracia. Por sorte, o Presidente da República teve esse pequeno detalhe em consideração.